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sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Os objetivos Estratégicos por trás da função Delegada

Depois de muita polêmica, a Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou no dia 13 de novembro o PL n. 31, de 2012, de autoria do governo estadual, que autoriza em todo o estado, que Policiais Militares sejam contratados em horário de folga para atuar em funções de segurança contratadas por prefeituras. Criada em 2009, o projeto conhecido como Operação Delegada (ou bico oficial) passou a permitir que policiais em horário de folga pudessem ser contratados pela prefeitura da capital paulista. Na sequência, em 2011, um convênio foi firmado com Mogi das Cruzes, e agora será possível oficializar em todo estado o "bico" de PMs, que estarão autorizados a atuar em todas as prefeituras que aprovar legislação específica. Segundo o texto enviado pelo Executivo aos deputados, o princípio da cooperação entre os entes federados garante a possibilidade de transferência total ou parcial de encargos, com isso permitindo uma “melhor gestão” do serviço público.

Respeitando todas as opiniões, favoráveis ou contrários à medida, é preciso ponderar sobre a visão e objetivos de longo prazo que pairavam sobre a mente dos que idealizaram tal mediada. Por trás desta iniciativa está o fato de que a municipalização da Policia Militar começou a ser pensada e planejada há pelo menos duas décadas. Esta visão foi defendida pelo pensamento estratégico da cúpula da PM a partir do reconhecimento de que o modelo brasileiro de segurança pública caminhava para o “inevitável” colapso. Os oficiais mais próximos do Comando Geral da época temiam pelo fortalecimento crescente das teses que defendiam a municipalização da segurança pública no Brasil.

No inicio da década de 90 crescia a corrente entre os próprios oficiais, que os estados federados teriam a cada ano, mais dificuldade em continuar suportando praticamente sozinhos, todos os custos do sistema de segurança pública, que além das policias, é composto também, pela justiça estadual e o sistema prisional. Estes juntos, em 2011 consumiram mais de R$ 20 bilhões, o equivalente a 18% do orçamento do estado de São Paulo naquele ano. Em 2013 a conta chegará próximo dos 20% ultrapassando os 35 bilhões de reais, e o pior: Ainda assim os recursos continuarão muito aquém do necessário para a eficiência do sistema, já que de concreto, só na capital houve um crescimento de 102,82% no número de pessoas vítimas de homicídio no mês de setembro, em comparação ao mesmo período do ano passado.

Em todo o Estado, a alta foi de 26,71% no mesmo período. São Paulo é o Estado com maior déficit de vagas no sistema prisional do país com déficit de 74.026 lugares. Ou seja: Em nosso modelo de segurança os Estados fazem de tudo e ao mesmo tempo não conseguem fazer “Bem” quase nada. Afinal, quem arriscaria recordar um único caso que em meio a alguma crise, o governo ou chefes de policia tenham admitido problemas e dificuldades para controlá-la? Este reconhecimento vem apenas depois que deixam seus cargos e assim a vida segue, com a defesa da tese dos “casos isolados e problemas pontuais”. Nossa justiça seria lenta em casos isolados? Nosso sistema prisional é Medieval – como disse o Ministro da Justiça - em fatos pontuais? Nossas policias mantém grupos de extermínio, redes de corrupção, efetivo com alto nível de stress, suicídio, desmotivação e baixos rendimentos em casos isolados e pontuais?

Em recente entrevista a Folha de S. Paulo, quando questionado sobre o recorde de pedido de demissões na corporação nos últimos 10 anos (440 entre janeiro e outubro), o comandante da PM afirmou que eram "boatos". Porém, ao ter conhecimento dos números informados pela própria PM por meio da Lei de Acesso à Informação, mudou o discurso e afirmou que os dados não o preocupam. "Nosso 'turnover' (rotatividade) é baixo. Temos quase 100 mil policiais e menos de 0,5% pediram exoneração. Isso é sempre reposto", argumentou. Porém se considerado o numero de ingressos anuaís (cerca de 1.000 / ano) o índice seria de 44%. Todos estes números revelam a verdade dos problemas de gestão de nosso sistema e dois indicadores são os mais alarmantes:

Os índices de criminalidade e o sofrimento da classe policial.

Temos assistido o governo comprovar neste assunto, a tese de que uma mentira dita muitas vezes passa a ser assumida como verdade. Daí a conclusão que os oficias da PM anteviram o caos. Reconheceram no inicio dos anos 90, que se tornava imperativo estar à frente dos fatos, iniciando o processo de municipalizar a PM, em defesa do “Status quo”, em detrimento da municipalização da segurança.

Estes oficiais da PM, homens de notável inteligência, construíram uma estratégia de longo prazo, abrindo caminho para o que hoje é vulgarmente conhecido como Bico Oficial, ou Função Delegada, mesmo que essa medida transfira a conta aos municípios e aos agentes da policia.

Nós já escrevemos em outras oportunidades sobre a competência com que a PM consegue defender seus interesses institucionais. Mas também temos dito que a defesa destes interesses corporativos tem minado, a cada ano, o sistema de segurança pública do Brasil e o cenário que temos hoje não deixa margem de dúvida sobre isso.

Alguém já se perguntou por que a capital paulista não melhorou seus índices de segurança, já que foi a primeira cidade brasileira a implantar tal medida e com total apoio do prefeito Gilberto Kassab? Em centenas de cidades brasileiras os custos com aluguéis de delegacias e quartéis, manutenção de viaturas e combustíveis, alojamentos e alimentação entre outros já estão a cargo dos municípios.

Assumir os salários seria o próximo passo.

Aos municípios tem cabido o ônus de assumir despesas e nenhum poder de gestão do sistema, além de continuar não recebendo qualquer tipo de compensação financeira dos estados.

A classe política, lideranças e autoridades ainda não compreenderam que a segurança pública opera como um “Sistema” e como tal, depende da ação conjunta e combinada de legislação, políticas de prevenção, inteligência, agencias de fiscalização e recursos humanos próprios, requerendo assim, de cada esfera governamental, eficiência na gestão do próprio sistema.

O que a PM vem fazendo ao longo dos anos com muita competência, para sobrevivência da “Casta” de Oficiais, se resume a passar a conta do sistema estadual ao sistema municipal, pois como já foi dito aqui, anteviu o colapso na gestão do sistema em que está inserida. Em Santos, a adoção da função delegada prevê um impacto de quase 1 milhão de reais por ano a folha de pagamento. O mais trágico é saber que mais esse custo não poderá garantir maior eficiência ao sistema, nem melhor qualidade de vida aos praças, pois a questão do aumento na remuneração dos PM´s é apenas um dos gargalos a ser enfrentado, fato que a carreira policial no Brasil não tem atraido profissionais para a instituição, e sabemos que este cenário não se alterará com a institucionalização do bico.

Já escrevi em outros artigos, que a tese da municipalização também não será solução, pois, os municípios não teriam a mínima condição de assumirem isolados a tal atribuição. É possível usarmos este momento de crise para efetivar as mudanças que nosso sistema exige e a descentralização do sistema brasileiro é o único caminho.

Com a reorganização dos sistemas estaduais, é possível promover a valorização das atividades especializadas nas policias e o enxugamento das estruturas, combinar o aumento de responsabilidade e de recursos aos municípios respeitando autonomia das esferas administrativas. Efetivar a integração das agencias nos três níveis com maior distribuição territorial dos efetivos, traduzindo os resultados em aumento de eficiência na gestão de todo sistema nacional.

Mas quais seriam os obstáculos para essa mudança?   
   
O desafio em partilhar os recursos e a resistência em compartilhar o poder.

Ainda assim é possível superar estes obstáculos se o espírito de estadista daqueles que detém poder no sistema superar o interesse pela defesa corporativista.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

ÉTICA POLICIAL E DIREITOS HUMANOS: QUAL A RELAÇÃO ENTRE AMBOS?



Expressões como Ética, Direitos Humanos, Democracia e Cidadania são comumente usadas pelos pensadores da sociedade quando falamos dos representantes do Estado, mas de fato, muito pouco difundidas pelas autoridades e formadores de opinião.

Obviamente, a difusão destes conceitos está intimamente ligada à prática e ao exemplo, que fala sempre mais alto que qualquer discurso do tipo: façam o que dizemos, mas não façam o que fazemos.

É exatamente sobre discurso desprovido de ação prática na gestão pública, que quero falar neste artigo. Quando lembramos que a definição de Ética brota da língua grega Ethos (morada) ou “Morada do Ser” como bem definiu o Filósofo Alemão Martin Heidegger, se torna natural reconhecermos que a ética nos indica direções e descortina horizontes para a própria realização do ser humano. Em essência, a conduta ética opera a construção constante de um SIM a favor da evolução do ser pessoal.

Até por isso, a ética deva ser eminentemente positiva e não proibitiva, pois para ela é mais importante respeitar e preservar a vida, do que o compromisso de não matar o próximo. 

Temos visto muita gente falar em crise ética na gestão pública brasileira, mas seria importante perguntarmos também, quais foram as nossas referências de conduta ética nos últimos 30 anos. Quantos nomes brotariam facilmente em nossas mentes? Quantos homens e mulheres públicas se notabilizaram neste período, pela busca afirmativa do direito à dignidade da vida humana em sociedade, ao invés de militar na defesa de ideologias, grupos e corporações?

No último dia 9 de agosto, o Jornal O Estado de São Paulo publicou matéria sobre a pretendida reforma da polícia de São Paulo divulgado pelo novo comandante geral da corporação. Apesar de informar a adoção de um conjunto de indicadores de eficiência e redução da criminalidade, a matéria destacou a criação de uma gratificação variável para premiar policiais que diminuíssem o índice de letalidade em ocorrências “supostamente” enquadradas como resistência seguida de morte. Tal cenário coloca mais uma vez na berlinda a tal crise ética que falamos há pouco. Uma referencia ética de valores distorcidos, que permeia a política de gestão dos recursos humanos policiais, praticada tradicionalmente no Brasil e na maior parte do mundo subdesenvolvido, quiçá, também no mundo desenvolvido.

Como em outros momentos, o Estado brasileiro (neste caso representado pela policia) agiu motivado pela tentativa de reduzir os impactos de sucessivos escândalos envolvendo seus agentes em ocorrências desastradas, em que, o excesso injustificável do ponto de vista tático/operacional ceifou a vida de pessoas.

Gratificação variável para quem “matar menos”, convênio com a Universidade para rever matriz de formação, entre outros anúncios, quando destacados pela mídia servirão apenas para desviar a atenção das críticas e aliviar a pressão externa, em especial, do Ministério Público Federal que há uma semana cobrou o afastamento de toda a cúpula da PM de São Paulo.

Mudar o comportamento do capital humano de uma organização policial requer uma visão muito além de mudar sua matriz de formação ou conceder gratificações.

Não estaríamos neste caso, diante de uma flagrante demonstração de inversão de valores?

 Não ser pobre é diferente de ser rico. Não estar doente é diferente de ser saudável. Da mesma forma, matar menos é diferente de preservar a vida.

Há 2 meses o próprio Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV) divulgou uma pesquisa apontando que quase metade dos brasileiros (47,5%) concorda que os tribunais aceitem provas obtidas mediante tortura policial. Em 1999, o número era de 28,8% favoráveis à obtenção de provas por meio de violência. Tais números mostram como anda a ética em nossa sociedade, que nos remete a um quadro preocupante: Esquecemos que caso estas práticas se tornem corriqueiras, ninguém estará livre de ser vítima delas (violência policial).

Obviamente não podemos ser omissos ao fato que na outra ponta, os policiais estão sendo acuados pela ousadia marginal. Em julho deste ano (apenas seis meses), mais de 40 policiais já haviam sido mortos, contra 47 em todo ano de 2011. Porém, é nesta omissão do estado/sociedade que está à raiz da traição ao capital humano das polícias, pois, a sociedade que não valoriza a vida como ética fundamental, não valoriza suas instituições, a família e não valoriza a si mesma.

Para concluir o raciocínio preciso recorrer a uma afirmação do CEO de um grande grupo empresarial brasileiro, que recentemente assisti falar sobre a expansão e internacionalização da empresa pelo mundo. Perguntado em uma entrevista sobre qual área estratégica demandou maior parte de sua atenção neste processo expansão, respondeu sem pensar: Investimento em Pessoas.

Pessoas que dirigem e operam a empresa. Pessoas que compram e divulgam os produtos da empresa.

Este último exemplo mostra qualquer organização de sucesso, seja no capital privado, ou nos mais essenciais serviços prestados pelo estado, reconhecer nos talentos humanos o capital essencial para cumprir metas e resultados estratégicos é base de uma cultura ética superior. Uma ética que afirma o valor da vida.

Atrair, formar, desenvolver, recompensar e reter os melhores talentos nas polícias é uma visão ainda atrasada quanto ao uso de tecnologias e estratégias de gestão em nossas agencias de segurança, tanto pública como privadas.

Um agente de segurança pública não anseia apenas por melhores salários, pois isso é o mínimo que a sociedade deveria oferecer-lhe para arriscar a vida todos os dias. Ele precisa também de estímulo profissional, perspectiva de progressão na carreira, prêmios por produtividade, ambiente profissional adequado, assistência social e familiar, além de capacitação e formação continuada.

No caso das agências policiais, que incluo obviamente as Guardas Municipais, esta preocupação deveria estar a muito tempo no centro das prioridades organizacionais. Valorizar os recursos humanos policiais revelaria ao mesmo tempo, uma preocupação com a vida das pessoas que a mesma polícia protege.

Aí está a relação entre os Direitos Humanos e a Ética Policial. Uma cultura ética que valoriza a vida humana deve garimpar e forjar seus quadros comprometidos com estes “valores” humanos e éticos fundamentais.

Num país em que os direitos elementares e fundamentais dos cidadãos não são respeitados, não há porque nos espantarmos com o fato de que a polícia também não reconheça que seus homens e mulheres deveriam ter direitos fundamentais e elementares reconhecidos e preservados. Daí se tornar “normal” gratificar um policial por “matar menos”, quando isso deveria ser uma busca insaciável por parte dos nossos gestores, apesar de todo risco e desgaste emocional que cerca a atividade em torno de seus quadros. Promover a ética na policia é afirmar a primazia pela prevenção, pelo respeito à dignidade da pessoa humana e pelo princípio da legalidade.

Todos estes elementos, pilares de qualquer democracia minimamente desenvolvida.